Aquela jogada que faz a gente voltar a ser criança | rawpixel
O espectro da solidão ronda o home office. Mesmo com mais gente morando em casa, como é o meu caso, todo dia tem momentos sem ninguém por perto. Só eu, o notebook e uma câmera. E esses momentos precisam acontecer. Nas reuniões a distância que poderiam ser um e-mail, nas pesquisas sonolentas sobre temas irrelevantes, nas entrevistas protocolares pra fingir interesse pelas histórias de clientes, na redação de textos nem sempre empolgantes. Não tem mesas divididas numa baia, não tem copa pra tomar o café da tarde e falar mal de imbecilidades corporativas, não tem planilha preventiva pra esconder da chefia que os olhos grudados na tela do computador se atentam a um jogo de futebol em pleno expediente.
Mas ninguém é uma ilha.
Pro bem e pro mal, somos seres sociais.
Conheço gente com a saúde mental prejudicada por saudades das interações presenciais durante o horário comercial, mesmo aquelas germinando intrigas entre colegas. Sou um homem prevenido, em vários sentidos. Quase todos os dias, uns muitos podcasts, uns poucos canais de YouTube e uns razoáveis programas de televisão são minhas companhias. Quando ando pela floresta de vídeos na internet, carrego na mochila a mania estranha de caçar vídeos com jogos antigos e boas histórias do futebol. Talvez porque eu curta mais as boas histórias do que o noticiário boleiro, esse cachorro correndo atrás do próprio rabo.
Numa tarde dessas, quando o tédio insistia em bater na porta do quarto-escritório, a entidade algorítmica me indicou narrações clássicas do José Silvério, que em novembro chega aos 80 anos. Como ainda me resta um tantinho de amor próprio, é evidente que cliquei, ouvi repetidas vezes o famigerado “e que golaçooooo” e deixei as tarefas do dia pra depois. Prioridades.
Senti o cheiro de outro tempo, quando a televisão de casa só transmitia duas partidas por semana. Quando celulares serviam pra fazer ligações. Quando esperava o noticiário esportivo pra ver os gols. Quando ouvia a rádio Bandeirantes desde o pré-jogo e me empolgava com o “alô ouvintes do Brasil” que abria as transmissões, antes da vinheta anunciando o Silvério como o grande nome dos próximos noventa minutos. E pouco importava a partida em si, era mais legal saber que o “pai do gol” esticaria a voz a cada “espaaaaaalma o goleiro” antes de chamar o relato de um dos repórteres.
Eu era feliz e sabia. Também era um moleque que imitava, ou tentava imitar, o Silvério. Eu era, e ainda sou, Silverista de carteirinha. Se faz falta ouvir o José Silvério no rádio, passar uns minutos ouvindo suas narrações mais clássicas me coloca num lugar de nostalgia.
Falo de uma boa nostalgia, não da nostalgia saudosista do “antigamente tudo era bom, hoje nada presta”. Falo daquelas recordações pelos bons momentos que nos fazem humanos. Da lembrança gostosa de quem, eventualmente, nem tá mais nesse plano, mas ajudou na nossa formação.
Também vou pra esse mesmo lugar quando leio literatura de futebol. Para pra pensar: especialmente nas crônicas, cada linha percorrida pelos olhos é como um serviço de teletransporte de volta à infância ou à adolescência. Aquele tempo de jogar bola na rua, na quadra ou no campinho, sem os tantos compromissos da vida adulta. É ler um desses bonitos textos sobre o futebol além dos resultados, sobre o futebol além dos números, sobre o futebol como elemento lúdico, e na hora ouvir a voz do pai, da mãe, de avôs e avós, dos mais antigos.
Nessa viagem no tempo, voltamos pra um estádio ou pra frente da televisão, acompanhando com aflição uma dessas partidas inesquecíveis e históricas. De lá pra cá, umas coisas melhoraram, outras pioraram, somos vítimas inescapáveis do tempo.
Vale o mesmo pro Silverismo: é delicioso ouvir aquelas narrações carregadas de emoção, mas a gente sabe que não ter quase todas as partidas acessíveis na palma da mão e a poucos cliques de distância é um tempo que ficou pra trás. A história tá escrita, esses gols ficam na memória. Não deixamos de olhar pra trás, mas precisamos andar pra frente. Como o tempo do jogo de bola na rua, que pode ser revisitado, revisto e relembrado. Como as crônicas do Nelson Rodrigues: são bonitas, são românticas, são deliciosas de ler, mas aquele esporte bretão ingênuo cresceu, virou adulto, ganhou malícia.
Dar play nesses gols históricos é acordar aquele moleque viciado em futebol e no José Silvério. Ele ainda mora aqui, meio escondido entre os compromissos da vida prática. Sigo Silverista, mesmo sabendo que não vou ouvir narrações inéditas. Sigo lendo a literatura de futebol, mesmo sabendo que as histórias contadas nesse campo têm excesso de passado e escassez de futuro. Pro bem e pro mal, não tô sozinho nessa. Não me deixo enganar pelo home office.
Tabelinha
DICAS DE LEITURA
Um livro, dois contos, uma crônica e uma conhecida newsletter pra você ler e, por que não?, fazer uma viagem no tempo com passagem de ida e volta. Tá bom, não tá?
O time que nunca seria campeão
Silveristas sabem que a narração do mestre na final do Campeonato Brasileiro de 2002 é tão inesquecível quanto o jogo em si, cujo relato pessoal do Alex Sabino em livro merece a leitura e a recomendação.In loco
Nesse conto, o protagonista é um egocêntrico narrador esportivo, contando um pouco da sua rotina na televisão e no streaming, além de falar não muito bem de alguns colegas de profissão.Cássio no campinho
Mais um conto! Esse foi publicado em meados do ano passado na revista piauí e escrito por Ricardo Lísias. Futebol, raízes e aquela boa nostalgia boleira e literária.Com leveza e cumplicidade
Se Léo Batista descansou, nunca cansamos de ler as boas crônicas do Douglas Ceconello, que escreveu bem demais sobre uma voz tão marcante no imaginário de quem acompanhou esportes nas últimas tantas décadas no Brasil.Travessão #4
Leu nossa primeira edição do ano? Nela, uma história de amor platônico entre a ficção e a literatura de futebol.
Prorrogação
RECADOS FINAIS
O ano já não é tão novo assim, mas ainda dá tempo de contar as novidades da temporada: para quem não sabe, estamos trabalhando em seis livros e ao menos dois devem ser publicados neste primeiro semestre. E aqui, no Substack, em breve vão pingar publicações extras da Travessão. Fica ligado/a!
Coletiva
A ÚLTIMA PALAVRA
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Travessão é a newsletter mensal da Dolores, uma editora dedicada ao universo do futebol. Sempre na primeira segunda-feira do mês, direto no seu e-mail.
Edição, redação e revisão Leandro Marçal e Raul Andreucci
Direção de arte Pedro Botton do Estúdio Arquivo
Pô, essa edição mexeu com algumas das minhas lembranças mais queridas. Fui correndo ouvir Silvério, que é o meu maior de todos. Bateeeu... É gol!
Abraço de outro Silverista.