Travessão do #apitofinal
O texto derradeiro da newsletter e também da Dolores, encerrando a nossa jornada nos livros de/com futebol
É chegada a hora em que o juiz ergue o braço e decreta o apito final | ChatGPT
É isso mesmo. Não tem piada, pegadinha ou fake news: a Dolores Editora está encerrando suas atividades. Quem fala aqui, de peito aberto, sou eu, Raul Andreucci.
Idealizei, criei, publiquei, de novo, de novo, e de novo…
Chegou a hora de parar tudo.
Com ajuda, apoio e carinho de todos os lados, toquei a Dolores por uns 6 anos. O registro mais certo que tenho de primeiras atividades são as trocas de e-mail pela ilustração do meu livro, A selva do Futebol (lançado em coautoria com Tulio Kruse, e que inauguraria a ainda Editora No Barbante, nosso primeiro nome), no segundo semestre de 2018. Estaríamos perto, portanto, de alcançar o fim da sétima temporada.
Uma bela jornada.
Nesse tempo todo, conheci gente incrível, amigos/as pra vida, desses com quem posso bater um fio a qualquer hora, e, no mínimo, parceiros/as de papo, de ideias, de projetos pra sempre e quando quisermos; e, claro, não saberia dizer com que precisão, desapontei alguns e algumas (chutaria que bem menos).
Aprendi uma porção de coisas que, na soberba dos meus 30 e poucos, quando gestava a ideia de uma casa de publicações totalmente dedicada ao futebol, imaginava que a experiência nas redações de jornalismo seria o suficiente. Coisas técnicas dessas que só vivendo o meio, o rame-rame do dia a dia, é que você pega. Não tem, portanto, muito mérito aí, só insistência e aprendizado por osmose. E aprendi mais sobre o ser humano. Do seu egocentrismo, da sua necessidade de aprovação, de segurança, da busca por colo, confete… E não é que eu esteja fora dessas características. Também sou humano. Nessas, porém, aprendi a esperar, a deixar falar, a contornar, a acalmar, a propor, a dialogar, a intermediar e a respirar. Respirar fundo. Muito e muitas vezes.
Ganhei reconhecimento? Não sei… Não sei mesmo. Há diversas questões a serem trabalhadas em terapia que colocariam em xeque minha incerteza, mas vocês é que me digam. Os números das vendas não dizem isso, tanto que estamos fechando. Nem o de seguidores em quaisquer redes sociais. Talvez a Dolores tenha sido só mais uma editora tentando sobreviver, alimentar um propósito; ou uma pessoa querendo contribuir com seu quinhão, sua paixão — como muitas no Brasil, vale frisar. Pode ser que tenha reverberado em alguns corações, que vá fazer falta pra uns doidos e umas doidas como eu; mas, voltando à pergunta, diria que não. Não acredito que ganhei reconhecimento. Ou, ao menos, não o que (suponho que) merecia — e isso passa longe de uma cobrança, as coisas são como são.
Abracei autores/as nacionais sem credenciais, mas cheios/as de vontade, de pesquisa, de estudo, de argumentos, de ideias, de originalidades e de histórias — ah, muitas histórias! Não pra que virassem tópicos de apresentação de power point pra levantar fundos numa bet qualquer, pra vender na Amazon (a quem, no final das contas, nunca cedi nossas obras) ou angariar capital simbólico pessoal. E sim pra abrir um espaço de oportunidades como eu gostaria de ter visto, descoberto, e em que me vi — forçando um pouco aqui, relevem — obrigado a criar e cuidar. Sozinho — em última instância, essa é a verdade.
E nisso agradeço aos deuses do futebol, pois o acaso soube trazer a cada colheita os livros que mereciam existir: da denúncia de crime ambiental na Amazônia e a realidade dos herdeiros do estádio construído com essas marcas; as duas revistas repletas de ensaios, crônicas e contos organizadas por um dos maiores documentaristas de futebol do país; um livro-arte-manifesto, iluminando um dos rebeldes mais silenciosos e menos conhecidos do esporte; a primeira torcida gay brasileira de que se tem notícia e, até hoje, presente, de fato, nas arquibancadas e todas as suas complexidades fora da idealização; um romance de realismo fantástico mergulhado em brasilidades, com a seleção de Sainha virando galinha no deserto; dos dois gringos, chileno e argentino, de contos sobre figuras do continente que nos aproximam dos irmãos e irmãs sudacas e sobre todos os detalhes do icônico jogo da Argentina contra a Inglaterra, em 1986, com Maradona em seu esplendor e no contexto da Guerra das Malvinas; o Febre de Bola versão tupiniquim, na mistura do que é torcer e cobrir o time do coração, ainda mais no fim de uma fila, com pitadas de sadismo; a reunião de contos de um dos grandes escritores de futebol contemporâneos; a consolidação em impresso de uma findada revista boleira saudosista; e um romance que eu gostaria de ter escrito, juro pra vocês, sobre as novas masculinidades, parentalidades e lutas pra se entender.
Aumentei um cadinho as barrinhas dos níveis de experiência, maturidade, ousaria dizer até que também de paciência e sabedoria. Infelizmente, acumulei dívidas no banco, tristezas no coração, dúvidas no peito e episódios de burnout. E daí ganhei outras perspectivas. De diminuir a velocidade, parar de me cobrar exaustivamente, entre outras medidas em prol da saúde mental. Em prol de mim. Em certo momento, percebi recentemente, em retrospectiva, a Dolores acabou se tornando a única coisa que eu tinha. Depois de um divórcio doído, morte da minha parceirinha (a cachorra querida que dá nome à editora), pandemia, morar de favor, perda dos avós e outra separação, era só o que me restava. Ajudou demais na manutenção de um cotidiano, me ocupava, porém… chegou o ponto em que não tinha volta.
O lugar onde tinha chegado não parecia o suficiente. Nem seria. Nunca. Em termos simbólicos, como esse que comentei, do reconhecimento, e pragmático mesmo, dos boletos a serem pagos. Como se caísse uma ficha enorme do que o capitalismo demanda, na tentativa quixotesca de me equilibrar nas contas fazendo livros nichados de futebol. Tarefa árdua. Sei também. Apostei em mais livros, aumentei tiragens, comecei a construir uma equipe, a estruturar processos e me dei conta de que nem aquilo tudo adiantaria. E nem era pessimismo. Realidade pura. Sempre seria necessário mais dinheiro, mais gente, mais investimento, mais livros, mais vendas… Mais, mais e mais. Essa loucura infinita me levou a uma exaustão em que não via motivo pra sustentar o peso da responsabilidade que me autoatribuía de salvar, manter, consolidar a Dolores, como se fosse algo divino, merecedor de uma jornada do herói em que, nesse parte que nunca acabava, eu vivia a fase eterna de provações e do(lo)res. Cheguei a temer o futuro sem nada até não temer mais e só querer fazer qualquer outra coisa a continuar com a Editora.
Criei a Dolores pra, em vez de reclamar, apontar o dedo, encher o saco, ficar dando sugestão pros outros, como me enxergava muito como jornalista, ver mais livros de e com futebol nas prateleiras das livrarias. Sentia falta de ler mais obras que não fossem biografias, coletâneas ou lançadas apenas no período de Copa do Mundo, a cada quatro anos. Queria mais romances, contos, pesquisas acadêmicas bem transpostas pro público em geral, a versão completa de uma reportagem maior, “eternizada” em formato impresso. E fiz de tudo pra isso. Inclusive em termos financeiros, algo que nunca abri muito, mas sim, perdi muita grana e hoje devo muito a dois bancos.
Um ciclo da minha vida que saiu caro e doeu demais. Trouxe, do outro lado da moeda, coisas intangíveis, inimagináveis que, espero, de alguma forma, vão me ajudar a seguir em frente e descobrir novos caminhos. Não sei o que virá, nem se será uma pausa apenas, dessas quando as bandas decidem dar um tempo de tanta briga e saco cheio um da cara do outro. Certo é que vamos interromper todas as atividades. Venho fazendo o máximo pra honrar esse processo — perante equipe, autores/as e todos com quem mantínhamos e mantemos qualquer relação e em respeito aos livros.
Só resta agora, do fundo do coração, agradecer a todos/as que nos acompanharam, trabalhando ao meu lado ou lendo e torcendo de longe. Valeu demais receber essa energia e compartilhar dessa brisa que uns/umas malucos/as inventam de fazer livro. De editora apenas de futebol – e não qualquer futebol. Foi lindo. E tá aí pra quem quiser ver. Nada de chorar, nem sofrer. Vamos, então, por mais. Seja o que for.
o/
Aquele abraço de gol,
Raul Andreucci
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Questões Práticas
P: Ainda posso comprar os livros da Dolores Editora?
R: Sim, os que ainda temos em estoque seguem à venda no site da Dolores (www.doloreseditora.com.br) até o fim de junho. Depois disso, é possível que continuem disponíveis em livrarias parceiras (o que depende de conversas) e, em último caso, quando não esgotados, com os/as próprios/as autores/as.
P: As redes sociais vão seguir ativas?
R: Mais ou menos, só por um tempinho. O perfil do Instagram não será apagado, mas não terá atualizações. Talvez alguns avisos nos stories, como os das livrarias que ficarem com nosso espólio. A ideia é fechá-lo no fim do ano. O mesmo vale para o Substack, onde você acaba de ler o texto completo desse adeus.
P: Tenho outro tipo de dúvida…
R: Sem problemas. Pode mandar um e-mail que o endereço eletrônico seguirá ativo ainda por tempo indeterminado: doloreseditora@gmail.com.
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Edição, redação e revisão Leandro Marçal e Raul Andreucci
Direção de arte Pedro Botton do Estúdio Arquivo
É triste pro mercado de literatura futeboleira, mas é do jogo!! Força sempre!!