Le football: ou est le gardien de but? / National Library of Medicine / Flickr Commons
Não é raro ver gente do meio literário espremendo os olhos, erguendo as sobrancelhas, mostrando rugas na testa e fazendo beicinho quando ouvem falar em livros de futebol. Como se fosse algo inferior. Uma reprodução comum do elitismo num meio que finge não ser elitista. Faz parte da vida. Tem problema, não. Vamos em frente assim mesmo. Agora… Tá certo isso aí, o termo livros de futebol?
Entre as muitas viagens que fazemos, essa é uma bastante central pra uma editora como a Dolores: afinal, publicamos livros de futebol ou livros com futebol?
Se existe uma resposta certa, desconhecemos. E, pra falar bem a verdade, é só uma desculpa pra fugir de uma investigação mais a fundo. Escolhemos, sim, deliberadamente, especular em cima deste ponto.
Livros de futebol visam uma parcela de estudiosos, de especialistas, então, cabe a pergunta: será que se sustentariam em públicos além do campo que circunscrevem?
Talvez, ao falarmos em livros de futebol, o imaginário traga à cabeça, logo de primeira, obras sobre táticas e estratégias, mais científicas e técnicas, direcionadas pra quem estuda (ou prefere) esses e outros aspectos - de preparação física, fisiologia, medicina esportiva, entre outras especificidades que contemplam uma pequena parcela.
Quem sabe, então, pensaria você, livros de futebol seriam aqueles das histórias de sucesso, as biografias de jogadores e treinadores estrelados; as campanhas de grandes títulos e diversos tipos de episódios memoráveis. Adoramos! E sabemos da importância desses trampos. Longe de desmerecer. Mas…
Pensa com a gente. Não fosse o futebol e, consequentemente, protagonistas ou cenas que marcaram torcidas (de clube, seleção ou até de uma persona; em caráter longevo ou momentâneo) ou inspiraram qualquer criador/a, produtor/a de cultura, arte, o campo que for… será que várias dessas publicações existiriam e/ou se sustentariam para além do campo que circunscrevem? Parece pouco provável.
Goshen College soccer player / Mennonite Church USA Archives / Flickr Commons
Falar em livros com futebol sugere uma amplitude maior. Porque, além do conteúdo dos parágrafos anteriores, entram aí abordagens menos óbvias ou reconhecidas:
• Como a ficção, que não apresenta somente enredos de futebol, restritos a essas figuras do meio, aos noventa minutos ou às arquibancadas. uma obra que carrega ícones, momentos e signos deste esporte como componente essencial e dele se aproveita para conduzir a narrativa, sem pretender agradar aficionados/as, é O Drible, de Sérgio Rodrigues (Companhia das Letras), que pode ser lido por qualquer pessoa interessada em… ler! o papel do jogo na trama, a forma como acaba utilizado (seja palco, momento ou caracterização de personagens) varia, claro, mas nas possibilidades é que mora a graça de imaginar, subverter e escrever ficção com futebol;
• Também a pesquisa, que combina dados, teorias e análises capazes de transformar o futebol em ferramenta e, ao mesmo tempo, oportunidade para pensar o ser humano, a vida, nossa sociedade e o próprio campo e bola a partir de outras perspectivas. o Plumas, arquibancadas e paetês: uma história da Coligay, da primeira torcida LGBTQIAPN+ de que se tem notícia no Brasil, não fica só no alentar, dentro do estádio; também fala de machismo, homofobia, entre outras intersecções. como não ver aí um trabalho que tem o ludopédio como mais um dos elementos (mesmo quando é o principal) como pesquisa acadêmica com futebol?;
• E, por fim, num balaio com coletâneas de contos, de crônicas, das duas coisas, com os chamados livros-reportagens, enfim, todas as categorias e gêneros imagináveis, percebemos que nada pode, por si só, viver do futebol como única fonte, por maior que seja a centralidade, nem virar refém dele. seria justo, por exemplo, rotular as crônicas de Nelson Rodrigues com futebol como suas crônicas de futebol? ou restringir os contos de Sérgio Sant’Anna com futebol como seus contos de futebol, diminuindo, assim, textos e obras de dois craques? qualquer publicação tem chance (na origem) e potencial (na leitura) de ser vista como literatura com futebol.
Não vamos tirar o mérito das grandes obras. Qualquer publicação tem chance (na origem) e potencial (na leitura) de ser vista como um livro com futebol
Nos reconhecer enquanto editora de livros com futebol, diferentemente do que poderia sugerir o texto no começo, não significa uma classificação menos precisa das nossas atividades. Pelo contrário. Contribui pra mostrar como o futebol é realmente um universo, com inúmeros sentidos e cheio de perspectivas desconhecidas ou sequer cogitadas sem o papel da leitura, deste tipo de leitura (também).
Não gostaríamos que os apaixonados por futebol andassem numa calçada e o público viciado em literatura, na outra, sem ninguém se cruzar, como totais estranhos. Nosso sonho e nossa insistência é pra que mais gente levante o braço esquerdo e diga: "Ei! Vamos atravessar a rua e ver o que encontramos no meio do caminho?”
Tabelinha
dicas de leitura
Inspirados pelo debate desta edição, separamos duas obras que transformam o tempo (regulamentar, inclusive) em espaço (como cenário mesmo) da narrativa:
O jogo: Argentina × Inglaterra · 1986 (Dolores, 2022)
Nesta publicação da casa, o jornalista Andrés Burgo destrincha a partida mais emblemática da vida de Maradona. O contexto esportivo e geopolítico, em especial da Guerra das Malvinas; os antecedentes e as consequências, sem perder de vista os principais acontecimentos daquele dia; e, se não todos, a maior parte de fatos e personagens em torno do duelo que consagrou um ídolo - incluindo bastidores do gol do século e de la mano de dios.A falta: Memórias de um goleiro (Tusquets, 2022)
No romance de Xico Sá, o narrador-protagonista é o goleiro Yuri Cantagalo. Prestes a se aposentar, ele narra o seu minuto-a-minuto derradeiro confessando a solidão embaixo das traves, a angústia pelo abandono da mulher, a ausência do pai, os tempos áureos no futebol espanhol, os perrengues e abusos na época da base, o mundo à parte dos jogadores e por aí vai. Passagens próprias do arqueiro, mas que se estendem à realidade de muitos/as - todos/as gente como a gente.
Prorrogação
recados finais
Entre o fim de setembro e começo de outubro, a Dolores participou de dois eventos: no dia 28, estivemos no lançamento do livro Sem catraca: da utopia à realidade da Tarifa Zero, de Daniel Santini (Autonomia Literária), no Sol y Sombra 2; e, no último sábado, acompanhamos as comemorações dos 4 anos de Boxe Vila Anglo, no Bar dos Botões. No mês de outubro, ao menos um encontro confirmado, já no domingo:
Feira de Futebol Atrox
13 de outubro, das 11 às 18h
R. Augusta, 1.371 - Galeria Ouro Velho, Loja 104 (São Paulo/SP)
Coletiva
a última palavra
Quer sugerir um tema pros próximos textos? Cornetar o último post? Elogiar, quem sabe? Com respeito e educação, pode tudo ;-)
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Travessão é a newsletter mensal da Dolores, uma editora dedicada ao universo do futebol. Sempre na primeira segunda-feira do mês, direto no seu e-mail.
Esta é a primeira edição, a de outubro, e assim seguiremos ao menos até a terceira, fechando o ano, em caráter experimental — antes, apenas o número zero.
Edição, redação e revisão Leandro Marçal e Raul Andreucci | Direção de arte, diagramação, seleção e tratamento de imagens Pedro Botton (Estúdio Arquivo)
Nossos irmãos uruguaios e argentinos (acho que chilenos e, possivelmente, os demais que falam espanhol) tem o termo “literatura futbolera”, que resume bem a questão. No fundo, no fundo, é literatura. Também é futebol. Algumas vezes é conto. Outras, crônica. Pintam alguns romances (ainda poucos). E ainda tem Jornalismo, que não deixa de ser também um pouco literário. Então, literatura futeboleira, como costumo escrever, acho que cabe bem.