Aquela hora de pôr o pé em cima da bola | Raw Pixel
Você dá uma zapeada, arrasta a tela do celular com o dedo, caminha a passos rápidos pela internet e logo encontra gente falando de futebol em todos os cantos e formatos: nos debates intermináveis e repetitivos dos canais esportivos; nos podcasts de gosto duvidoso com “resenhas” pretensamente engraçadas contadas por ex-boleiros que se dizem carismáticos; nas páginas de Instagram com esses mesmos ex-jogadores se intitulando os maiores craques da história, falando em microfones de lapela fora das lapelas; nas discussões vazias e inflamadas por ex-jornalistas clubistas; nas notícias exclusivas e de última hora sobre assuntos de relevância questionável.
Então, você para e se pergunta: com essa overdose de “conteúdo”, por que escrever sobre futebol? Como não se perder numa selva de textos e vídeos tão pasteurizados? Como não fazer mais do mesmo? Faz sentido escrever sobre futebol fugindo das regras algorítmicas por cliques e audiência?
As interrogações se multiplicam quando você percebe que parte considerável do público futeboleiro não tá nem aí pra leitura, vista como um animal selvagem mostrando os dentes, e parcela expressiva do público literato nem liga pro esporte mais popular do mundo. Combinar os dois mundos não é fácil. Nunca foi. Você desconfia que nunca será.
Dizer que os tempos mudaram é um clichê, mas clichês têm um fundo de verdade
Você talvez lembre dos jornais impressos e esportivos com 20 páginas dedicadas a futebol e umas quatro ou cinco outras modalidades; sente falta dos portais especializados com mais textos se aprofundando no pré-jogo, na crônica da partida e nas repercussões pós-rodada que iam além dos resultados; suspira pelas análises feitas pra preencher espaço no papel; reimagina os campinhos destrinchando as equipes com comentários embasados de especialistas; dá risada das especulações ilusórias, para manter a torcida engajada quando engajamento tinha outro sentido.
Deus te livre do saudosismo bobo e piegas, mas tem gente bem gabaritada dizendo que estamos mais distraídos. Parte do público boleiro se alimenta de “notícias” sem pé nem cabeça, nem lê direito o título com negociações impossíveis de acontecer, porém, possíveis de render muitos cliques. Outra parte do público do futebol só quer saber dos melhores momentos e não tem paciência pra aturar 90 minutos de bola rolando, no maior estilo “bela história, mas vou esperar sair o filme”.
E aí, você sente uma aflição e volta a se perguntar: por que escrever sobre futebol?
Vale a pena dar murro em ponta de faca num país em que 60% da população não cultiva o hábito da leitura? Se só 16% do povão comprou ao menos um livro em 12 meses, por que escrever sobre futebol?
Pra não torcer o tornozelo nessa caminhada, você tem que saber onde pisa. Nem todo mundo ama campo e bola, nem todo mundo lê regularmente; bastante gente é fissurada em campo e bola, um grupo restrito de pessoas é viciado em leitura; e é raro encontrar gente viciada em campo e bola e em livros de campo e bola ao mesmo tempo. A dura constatação afasta frustrações e tristezas criadas por expectativas mal calibradas.
Se você tem o sonho de conquistar milhares de leitores do dia pra noite escrevendo textos de futebol (ou textos com futebol?), alcançando num passe de mágica as listas dos livros/blogs/sites mais lidos, é melhor tomar um copo d’água pra afastar a insônia e os pesadelos.
Tem muita gente falando sobre futebol por aí. E tem muito ruído sobre futebol pra deixar a galera estimulada. Você não é, necessariamente, ruim de letras das bolas se não alcançar sucesso de audiência e de mercado escrevendo sobre futebol. Você não precisa se culpar pelo interesse menor que o potencial por textos mais profundos sobre futebol. Você não tem obrigação de escrever do mesmo jeito que milhares de colunistas (e “cocôlunistas”) dos grandes veículos de comunicação. Pouquíssima gente vê futebol e lê com frequência. Isso é importante pra evitar sofrimentos desnecessários, como se achar incompetente porque não tem sucesso mercadológico ao circular nesse meio.
Talvez você questione tudo isso. Porque todos os dias, você diz, lemos mensagens no WhatsApp, postagens nas redes sociais, legendas nos memes e nos vídeos curtos. Em todo conteúdo rápido, fragmentado e superficial, capaz de chutar a nossa capacidade de concentração pra bem longe, lemos. O texto tá ali, de um jeito ou de outro. Nunca se leu tanto na humanidade, você insiste. Mas você para, pensa e percebe que o ponto central aqui é a leitura atenta, a leitura mais profunda, ainda que ligeiramente mais profunda. O ponto central aqui é a leitura que vai além do título sensacionalista, que não se resume ao caça-clique, que causa reflexão a partir da concentração no texto escrito. Você entende o ponto e segue adiante.
Muita coisa (ou quase tudo) já foi dita, escrita e comentada sobre futebol
Te resta, já que você insiste no assunto, encontrar a sua voz original, a sua abordagem de um ponto de vista bem particular sobre futebol. Ninguém nunca escreveu igual ao seu próximo texto. E você sabe que o futebol funciona como uma chave para interpretar o mundo. O futebol te ajuda a se conectar com uma comunidade que une a paixão pelo jogo com novas visões e histórias. Que te impressionam, que te maravilham, que te atordoam. O campo e a bola te geram assuntos, bate-papos, contatos, amizades, amores. Desse lugar de quem escreve sobre futebol, te leem, acessam a sua mente e a sua alma. Mesmo que você não consiga pagar as contas escrevendo sobre futebol, mesmo que mais gente dê atenção aos ruídos da floresta virtual do que aos seus textos profundos e cheios de significado.
Você não consegue parar de escrever sobre futebol. Você leu em algum lugar que a escrita não precisa ter utilidade. Pra você, colocar sua verdade pra fora é mais importante que dar muita audiência. Você gosta mais de escrever sobre futebol do que gosta de futebol. Agora você não se importa mais em buscar explicações lógicas.
E você continua, ainda bem, escrevendo sobre futebol.
Tabelinha
dicas de leitura
Você insiste na nossa newsletter e cai nessa pequena lista de recomendações:
Manifesto em defesa do pênalti conservador
O jornalista Alexandre Alliatti, autor do premiado Tinta Branca, traz com bom humor uma justa reclamação contra a firula na hora das penalidades máximas.Relvado por extenso
Nesta edição especial da revista Relvado, 13 textos publicados entre 2018 e 2020 mostram o quanto ainda é relevante (claro que é!) escrever sobre futebol indo além dos textos curtos, rápidos e superficiais do dia a dia.Travessão #1
Pra quem chegou agora, na primeira edição da nossa newsletter falamos um pouco sobre o suposto dilema entre livros de futebol ou livros com futebol.
Prorrogação
recados finais
Você salva os links da seção anterior e promete ler depois. Quer chegar até o fim do texto dessa edição e agora descobre uma bela surpresa: um descontão! É isso mesmo. Vai lá conhecer as publicações da Dolores e, na hora de fechar a compra, basta usar o cupom “travessao2” pra ter 25% off. =)
Coletiva
a última palavra
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Travessão é a newsletter mensal da Dolores, uma editora dedicada ao universo do futebol. Sempre na primeira segunda-feira do mês, direto no seu e-mail.
Esta é a segunda edição, a de novembro, e assim seguiremos ao menos até a próxima, a terceira, fechando o ano, em caráter experimental — vamos ver como será depois o/
Edição, redação e revisão Leandro Marçal e Raul Andreucci
Direção de arte Pedro Botton do Estúdio Arquivo
Quando pinta essa dúvida, sempre lembro desse texto do mestre Galeano:
“Eu escrevo para os que não podem me ler. Os de baixo, os que esperam há séculos na fila da história, não sabem ler ou não tem com o quê.
Quando chega o desânimo, me faz bem recordar uma lição de dignidade da arte que recebi há anos, num teatro de Assis, na Itália. Helena e eu tínhamos ido ver um espetáculo de pantomima, e não havia ninguém. Ela e eu éramos os únicos espectadores. Quando a luz se apagou, juntaram-se a nós o lanterninha e a mulher da bilheteria. E, no entanto, os atores, mais numerosos que o público, trabalharam naquela noite como se estivessem vivendo a glória de uma estréia com lotação esgotada. Fizeram sua tarefa entregando-se inteiros, com tudo, com alma e vida; e foi uma maravilha.
Nossos aplausos ressoaram na solidão da sala. Nós aplaudimos até esfolar as mãos”.