Nada como largar o celular, servir um copo e sentar para ler um pouco | PNGWing
Vamos fazer um exercício de imaginação, uma suposição, criar um caso hipotético, supostamente ficcional, pra ilustrar essa humilde newsletter. Qualquer semelhança com a realidade será (talvez seja) mera coincidência (quem sabe?).
O nosso episódio é vivido por um Editor (um qualquer aí), que conta alguns anos publicando livros com futebol. Ele é o convidado especial de um clube de leitura, daqueles que escolhem uma obra por mês e leitores/as “comuns” comentam cada linha em encontros virtuais - à distância, portanto - de diversos cantos do globo.
O Editor gosta desses espaços, dos encontros e das trocas. Fica lisonjeado. De verdade. Até sonha em ter o próprio clube de leitura, só não sai falando por aí (ao menos publicamente). Ele sabe que o ambiente costuma ser amigável…
(Detém-se por um instante)
… surgem insights, novas perspectivas - e também sai muita bobagem. Faz alguns meses, aliás, que participa desse clube de leitura e autores/as não são chamados/as justamente pra que o grupo fale à vontade, sem restrições ou constrangimentos, dando suas impressões sem julgamentos.
Nada de ansiedade ou angústia nas semanas antes do encontro, portanto. Não há motivo... Certo? No dia anterior, então, tudo na paz também. Nas últimas horas, tranquilo... Imagina! O Editor preocupado com comentários direcionados a um livro publicado por sua (ainda engatinhante) Editora? Jamais.
Chega a hora do encontro. Antes de mais nada, é bom conferir os apetrechos eletrônicos, conectando o Editor (quiçá) com o mundo. Não tenho nada a temer, pensa. Nem faz sentido ficar apreensivo com a recepção desse romance, sei da qualidade, assegura a si mesmo. Fecha a porta do escritório (seu quarto), acende a luz e posiciona a luminária para lives por trás da câmera pendurada no notebook.
Suado, com a testa brilhando, o Editor usa o mouse pra abrir o microfone na plataforma de reuniões remotas e, na sua vez, logo reforça aspectos que transcendem as quatro linhas pra destacar a obra ali debatida - como, por exemplo, a finitude dos relacionamentos e da vida. Isso porque se preparou e sabe que descrever um livro com características extracampo dá aquela forcinha pra se aproximar de quem odeia escanteios, abomina impedimentos e se choca com a vulgaridade dos gritos de gol.
E pra ser convidado de novo, seguir (minimamente) respeitado (ou não tão mal falado), o Editor termina sua participação, depois de certos afagos e um tanto de tapinhas metafóricos no ombro, ressaltando mais coisas do catálogo, como a reportagem expondo bastidores da sujeira política num importante estádio do Norte, a interminável espera pra realização de um sonho, a pesquisa extensa em aspectos de inclusão e diversidade, pequenas e deliciosas histórias sul-americanas, a mistura de modernismo e provocação surrealista. Encerra sentindo-se nas alturas. O Editor se imagina dentro de campo, escapando da marcação cerrada, driblando soberbas e dando fintas nas certezas prévias (preconceituosas também) de tanta gente sobre tabelinhas entre as letras e a bola - e talvez atordoado pela adrenalina.
Desligando o notebook, o coração mais palpitante do que o normal, o Editor para e se pergunta: fui bem? Usei boas estratégias? Dá pra convencer alguém a ler futebol sem gostar de futebol? Consigo demonstrar que essa e aquela publicação vão além do campo e bola sem parecer vendedor de varejo babando por comissão?
Sem conseguir responder a si mesmo (ao menos sem ser condescendente ou carrasco), tampouco dormir (por que será?), o Editor atravessa a madrugada pesquisando aleatoriedades que vão parecendo um sinal divino (ou algorítmico).
Descobre, por exemplo, que cerca de 19% dos brasileiros não torcem por nenhum time, número inferior apenas ao de flamenguistas. Como é de Humanas, suspeita que o excesso de café noturno está turvando sua interpretação. A conclusão é estarrecedora: 1 em cada 5 conterrâneos não torce pra ninguém. Consequentemente, têm forte potencial de ignorar por completo esse esporte, sem ligar pra sua popularidade e impacto cultural desde sabe-se lá há quantas décadas.
Feito jogador na base, sonhando com lances decisivos em finais importantes pra carreira, o Editor se vê em outras oportunidades parecidas como a do nosso caso hipotético, tentando atrair amantes da leitura, mas odiosos da bola: “este é um livro de ficção inventivo na linguagem”, “esse é um livro-reportagem que se aprofunda na trama”, “aquele livro conta transformações históricas importantíssimas na sociedade”. E só fala do futebol no fim do papo, como se fosse um apêndice, detalhe besta.
Tal qual o autor do gol do título no último minuto, garantindo a taça que tira o time da fila, o Editor sente uma felicidade enorme ao ser retribuído com aquele olhar positivamente surpreso: “Uau, e tem futebol? Nem gosto, nem ligo, mas me interessei bastante, vou ler, hein?”, diria o leitor anti-esporte bretão.
Já é tarde e o Editor chega à óbvia conclusão de que livros são livros. Uns bons, outros nem tanto. Uns pra mim, outros pros/as outros/as. Livros transformam. São poderosos, ainda que subestimados. Com futebol ou sem futebol. E não dá pra negar: faz parte da nossa cultura, impossível ignorar, ainda que necessite ser modificado em muitos aspectos.
Deixar de ler futebol por não ter esse estranho vício em futebol é mero desperdício, conclui o Editor. Que até vai dormir mais tranquilo nesse caso meramente hipotético, nessa suposição, nesse exercício de imaginação.
Tabelinha
DICAS DE LEITURA
Se o caso hipotético desta newsletter fosse mais que hipotético, é provável que o Editor indicasse alguns textos e livros que vão além da bola…
Abril, no Rio, em 1970
Publicado em Feliz ano novo, o conto de Rubem Fonseca nos aproxima das inseguranças e esperanças de um novato, ansioso pela grande chance, distraído com o cuspe de Gérson e a abstinência sexual na véspera do jogo.Você não quer ficar sozinho
Lançado neste ano, o romance de Luiz Venâncio tem futebol, paternidade e discussões sobre as novas masculinidades. Literatura de primeira.O último a ser escolhido
Beleza, mais uma prata da casa pintando por aqui, mas releve, o Natal é logo ali. E nesse livro de Leandro Marçal, 13 contos cercam o futebol com personagens, ambientes, linguagens e características diferentes entre si.Travessão #2
Isso aqui não é uma retrospectiva do ano, mas nunca é demais lembrar da última edição, com a quase irrespondível pergunta “Por que escrever sobre futebol?”.Travessão #1
Lembramos, no embalo, o texto da estreia, onde debatemos as diferenças (diferenças?) entre livros de futebol dos livros com futebol.
Prorrogação
RECADOS FINAIS
Olha aí, hein? Já estamos nos acréscimos de 2024… Até fizemos nossa festinha em comemoração aos 5 anos de Dolores Editora! Curtimos uma tarde e começo de noite na Fatiados Discos com pessoas queridas, cruciais nessa caminhada até aqui. Aliás, queremos estender os 50% de desconto daquele dia na compra de qualquer item do nosso site pra vocês, hipotéticos/as leitores/as da Travessão.
Vai lá conhecer as publicações da Dolores e, na hora de fechar a compra, é só usar o cupom “travessao3” pra garantir um preço bem mais camarada. =)
Agradecemos a todos/as que vêm acompanhando esses primeiros passos da newsletter, tá bacana demais! A gente volta logo, logo: em 6 de janeiro.
Até 2025!!
Coletiva
A ÚLTIMA PALAVRA
Quer sugerir um tema pros próximos textos? Cornetar o último post? Elogiar, quem sabe? Com respeito e educação, pode tudo. ;-)
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Travessão é a newsletter mensal da Dolores, uma editora dedicada ao universo do futebol. Sempre na primeira segunda-feira do mês, direto no seu e-mail.
Esta é a terceira edição, encerrando uma série de três textos escritos pelos próprios Editores. Devemos ter novidades na próxima, a quarta, inaugurando o ano com tudo. o/
Edição, redação e revisão Leandro Marçal e Raul Andreucci
Direção de arte Pedro Botton do Estúdio Arquivo